Cobrança é o que não falta aos governos. Todo dia, o dia todo e, em especial, ao completar períodos redondos: cem dias, seis meses, um ano e por aí vai. Não podia ser diferente com o governo Lula, um governo que – diga-se de passagem – gerou toda sorte de expectativas e mexeu com muita força na esperança dos brasileiros.
A experiência demonstra que a avaliação de um governo é tarefa complexa a partir da variável tempo e dos vários tribunais a que se submetem as gestões, quais seja, o tribunal político-eleitoral, o tribunal da história, sem falar nos atentos tribunais de Contas, uma corte especial que verifica a lisura e a licitude da aplicação do meu, do seu, do nosso dinheirinho.
No caso do governo do presidente Lula, o tempo é curto, os “cobradores” são, como não podia deixar de ser, mais analistas do que juízes e, ainda que o fossem, não passariam de precaríssimas instâncias de primeiro grau.
De outra parte, é preciso, neste tipo de avaliação, não cair em armadilhas comuns como é o caso do oposicionismo sistemático, radical e oportunista, do jornalismo implacável e hemófago, espécie de vampirismo que adora esculhambar e se banquetear com o sangue dos governos, e do intelectualismo ressentido, frouxo, distante, desencantado, emparedado nos castelos da academia e que se nutre do amor doentio de gigolô da miséria.
Como o maior risco que corro é o da primeira hipótese, procurei me restringir, tão somente, a um dos aspectos da governança: a análise do discurso do presidente que, em certo período da história, fora denominado de “fala do trono” e que no mundo contemporâneo, tempo de midiacracia (e já que os chefes de Estado se transformaram em comunicadores e “pop stars”), cairia bem o epíteto de “logorréia do poder”.
Neste sentido, o primeiro consenso é que o presidente Lula falou muito, superando seu antecessor. Como quem fala muito, o risco de derrapagens é grande, como quem fala com a autoridade presidencial, o verbo pode se tornar uma flecha que fere, envenena, ou um bálsamo que alivia, agrada, acaricia, ou um compromisso que altera expectativas, afetando as bolsas e os bolsos.
O segundo consenso é que o discurso do presidente é uma espécie de “sustentação oral do governo” já que o mensageiro ainda desfruta de grande confiança do povo brasileiro (o Ibope registra uma queda de 5 pontos percentuais) e os marqueteiros e comunicólogos do Planalto sabem que Lula é uma coisa e o governo outra. Então, que fale e fale com emoção, fale de coração para coração, tocando nos ícones e na sensibilidade populares.
Não faltou quem estivesse atento para as virtudes do comunicador, muito menos quem registrasse equívocos, gafes, críticas ao estilo e fizesse uma comparação do conteúdo dos discursos com a “filosofia da auto-ajuda” tão em voga nas listas dos livros mais vendidos.
No entanto, não me parece que seja esta a questão central dos discursos presidenciais e sim os significativos sintomas de um populismo messiânico, salvacionista bem a gosto do caudilhismo sul-americano, temperado pela matriz ideológica do Partido dos Trabalhadores.
Nesta linha, a apreciação mais contundente vem do insuspeito professor de ética e filosofia política da Unicamp, Roberto Romano, no artigo publicado na Folha de São Paulo, edição do dia 25 de julho, sob o título Contra o despotismo, segundo o qual os improvisos do presidente “primam pela arrogância e pela ausência do fundamental decoro”, eis que, no discurso de Pelotas (logo Pelotas), o nosso Chefe de Estado fez uma apologia à virilidade e à fertilidade do macho pernambucano.
Não se trata, a meu juízo, de um acesso de mau gosto associado ao politicamente incorreto. Nem de um preconceito às avessas em relação ao homem nordestino. Muito menos de um episódio isolado de egocracia. É um sintoma de messianismo associado de forma tosca e recorrente à matriz ideológica do PT.
Senão vejamos. Esta matriz ideológica se compõe de três vertentes: a leninista e neo-stalinista (abrandada por um rótulo de “socialismo democrático” que a experiência concreta demonstrou ser um oxímoro), a do cristianismo quiliástico, milenarista e profético, a do democratismo popular que abomina democracia representativa como um arranjo liberal burguês.
Intencionalmente ou não, essas vertentes se materializam no discurso presidencial de várias formas. O recurso às freqüentes parábolas e metáforas faz parte da linguagem dos profetas e dos líderes de massa, o Pai que premia e castiga está explícito, por exemplo, no discurso de inauguração do terminal ferroviário no alto do Araguaia: “Eu quero tratar o povo brasileiro com o mesmo carinho e a mesma paixão como trato cada um dos meus cinco filhos”, o centralismo autoritário e um certo desprezo pela instituição parlamentar (que abriga pelo menos “300 picaretas”) se revela no demiurgo, quando o presidente se coloca entre o céu e a terra ao invocar Deus como o único obstáculo possível de evitar as reformas, o líder personalista, refundador e salvador da pátria se manifesta na ação recriadora de um novo mundo e numa caudalosa referência ao pronome EU (em seis discursos proferidos no mês de junho o presidente usou EU cento e quarenta e seis vezes, sem contar o EU implícito na forma verbal e o EU diluído no plural majestático NÓS).
Institucionalmente, as alianças pela governabilidade não têm evitado a ocupação do governo pelo aparelho partidário. Que o diga o enorme poder de José Dirceu.
Estes sintomas indicam que o PT tinha e tem um competente projeto de conquista e manutenção do poder. O que lhe falta é um projeto de governo.
Não é por outra razão que se aprofundam a cada dia os conflitos e que se exacerbarão com a estagnação econômica.
A procedente dúvida é a seguinte: no momento da popularidade em baixa que presidente arbitrará os conflitos? O negociador reformista de inclinação social democrática ou o líder carismático, Lula, o Salvador? Como cidadão brasileiro torço pela primeira hipótese, até porque no filme do populismo salvacionista a gente morre no fim.
(*) Gustavo Krause, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, é consultor de empresas
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