O Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) é, talvez, o tribunal mais poderoso do mundo. Decide todas as divergências entre os países membros, relativas ao comércio de bens e serviços, aos investimentos, à política industrial e à propriedade intelectual. Tem jurisdição sobre os 182 países e territórios aduaneiros que aderiram à Organização (na Corte Internacional de Justiça, os Estados devem aceitar submeter-se ao seu julgamento). Fui eleito em setembro de 2001 para o Órgão de Apelação, por meio de um processo de seleção em que todos os membros da organização participaram e decidiram por consenso. Quando cheguei a Genebra, sede do órgão, sofri um verdadeiro choque cultural. Descobri um tribunal diferente de todos os que tinha visto nos 45 anos em que atuo no mundo do direito.
Assumir as funções foi o primeiro choque — não encontrava a expressão correspondente a “tomar posse” nem em inglês nem em francês. Nesta língua, descobri, não se toma posse — tem-se a “inauguration”, a estréia no cargo. Em inglês, ensinaram-me, há o “swearing in” — o juramento ou compromisso de servir. A diferença dos conteúdos semânticos foi um choque e uma lição. Espera-se que alguém vá servir, e não se apropriar de algo. Coisas da história e das tradições, mas que, quem sabe, podem ter algum impacto no inconsciente coletivo.
Depois me espantou a modéstia das instalações. No Brasil, os prédios dos tribunais sempre me impressionaram pela majestade e pelas dimensões. O Supremo Tribunal Federal ocupa lindas instalações projetadas por Oscar Niemeyer, numa área impressionante, de 62 137 metros quadrados, em que 11 ministros são assistidos por 775 funcionários. O Superior Tribunal de Justiça é uma cidade, com o dobro da área do Supremo: 138 670,37 metros quadrados, e 2 016 funcionários dando apoio aos ministros. O Tribunal de Justiça de São Paulo, além do imponente prédio do início do século no centro de São Paulo, tem três edifícios. Enfim, há sempre majestade e instalações suntuosas, e parece que o pessoal burocrático é proporcional ao volume de processos. Nunca compreendi a razão disso, pois a quantidade de juízes não obedece às mesmas proporções. Em outros países também há, ainda que em menor escala, belas instalações e grande volume de processos.
E agora eu chegava a um tribunal de apenas 450 metros quadrados, um cantinho do Centro William Rappard, sede da OMC. Os membros ocupam, cada um, uma sala modesta, com móveis velhos e um computador fora de moda, de quatro ou cinco anos atrás. Não há biblioteca própria, usa-se a da OMC, por deferência da organização, segundo seus horários e normas. Os integrantes do Órgão de Apelação trazem seus livros e material de consulta, poucos, para que caibam na sala, junto com os volumosos dossiês dos casos já decididos, em geral com 6 000 a 8 000 páginas cada um. A diretora, que é a chefe da Secretaria do Tribunal, tem uma sala pequena, como todos. Há, também, uma sala de reuniões, onde são feitos os julgamentos, que tem mais ou menos 30 metros quadrados. As audiências são realizadas numa sala emprestada pela OMC. O pessoal de apoio é de 15 homens e mulheres. Na maioria são assessores, advogados que ajudam nas pesquisas e que, junto com os sete membros do Órgão de Apelação, são atendidos por três secretárias. A limpeza, a contabilidade e o pagamento do pessoal são terceirizados. A modéstia dos recursos é demonstrada pelo orçamento do órgão, de 1 888 590,24 dólares por ano (que pagam tudo isso e mais as viagens dos membros, residentes nos quatro cantos do mundo, além dos telefones, copiadoras, fax, aquecimento no inverno etc.).
O sistema de trabalho também inova. Cada caso é atendido por uma divisão. Esta corresponde às Câmaras nos tribunais superiores brasileiros, com a particularidade de que seus componentes variam de caso para caso. Dos sete membros do Órgão de Apelação, três compõem a divisão que decidirá o caso. Não são sempre os mesmos, nem se sabe quem serão, porque um cálculo matemático complexo faz com que a escolha e a composição variem aleatoriamente. Isso assegura harmonia e continuidade na jurisprudência.
As decisões são tomadas por consenso: todos partilham as experiências e não formam grupos fixos. O desafio de construir o consenso leva ao diálogo constante e sem vaidades. O texto da decisão é de autoria comum dos três e é discutido com os outros quatro membros, durante a chamada “troca de pontos de vista”. Parece uma mesa-redonda, em que os sete discutem o projeto de decisão e colaboram no seu aperfeiçoamento. O consenso vai ser importante no futuro para manter a certeza jurídica e a orientação do tribunal. Nos seis anos do Órgão de Apelação, não houve nenhuma dissidência e, pelo que vi, não haverá.
A experiência de nossos tribunais superiores é outra. Um dos ministros ou desembargadores é o relator e lê o seu voto em plenário; os demais, após ouvi-lo, discutem e concordam ou discordam. Isso torna quase impossível voltar atrás, mudar de opinião ou conseguir consenso, e há dissidências entre os participantes. Um dos casos clássicos do Supremo Tribunal Federal, em que se decidiu se um tratado poderia ser revogado por uma lei posterior, contém 11 votos com fundamentos diferentes e a questão foi decidida por maioria, sem que se saiba até hoje de quem foi a decisão que prevaleceu.
Outra surpresa foi o rigor das regras de conduta e de sua aplicação. Desenvolvidas pelos próprios membros do Órgão de Apelação, entre outras coisas, proíbem manifestar-se sobre qualquer assunto ou fato que possa vir a ser objeto de decisão. Para mim, por exemplo, professor de direito internacional, não poder mais publicar e escrever sobre muitos temas é um sacrifício. Mas eu compreendi e considero a medida correta. Não se pode ter independência quando se tem uma opinião dada a público sobre um assunto. É um prejulgamento. Outra regra não permite aceitar convites dos jurisdicionados, isto é, dos embaixadores e representantes dos países membros da OMC ou dos respectivos advogados, para atividades sociais. Também não se aceitam convites de jurisdicionados ou instituição subvencionada ou apoiada por estes para participar, às suas expensas, em seminário, viagem ou congresso.
O rigor da exigência quanto ao prazo para a decisão levou a eliminar todos os passos burocráticos desnecessários. Por exemplo, há uma apelação. Ela tem de estar decidida quatro meses depois. Nesse período, o apelante e terceiros interessados apresentam suas razões e o apelado comenta; uma audiência que dura dois ou três dias ocorre para as partes prestarem esclarecimentos e apresentarem os argumentos finais. Depois, corre a transcrição dos depoimentos e, finalmente, são reservados 17 dias para as traduções. Sobram apenas 48 dias, incluindo domingos e feriados, para os membros lerem tudo o que se refere ao caso, estudarem os precedentes e as normas aplicáveis, elaborarem o projeto de decisão, discutirem-no na “troca de opiniões”, darem a redação definitiva e reverem as traduções. Não há recursos nem férias forenses. Quem quer que viole as regras ou descumpra os prazos estará sujeito a impeachment.
As relações pessoais no Órgão de Apelação também foram chocantes pela informalidade, pois todo mundo se trata por você. Usa-se só o prenome. As secretárias chamam o Honorable James Bacchus — conhecidíssimo e importante advogado americano, professor universitário, ex-deputado, ex-consultor do USTR (a Secretaria do Comércio dos Estados Unidos) e presidente do Órgão de Apelação — não de Excelência, como fariam no Brasil, ou de Your Honour, como nos Estados Unidos, mas simplesmente “Jim”. Da mesma maneira, chamam o professor Giorgio Sacerdoti de “Giorgio”, e assim com os demais. As comunicações se fazem por e-mail ou carta, há reuniões e decisões tomadas em conferências telefônicas. Não há autos costurados, carimbos, despachos etc. Minha mãe dizia que seria bom morar na Suíça “porque lá a gente não tem surpresas”. Pois eu tive. Especialmente o modo como os juízes se vêem, ou são vistos pelo povo, é muito diferente.
(Publicado na revista EXAME de 07/07/2003)
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